"Eu sou tão malvado que eu deixo a medicina doente" ― Muhammad Ali.
Eu faço tratamento de uma suposta bipolaridade há mais de 12 anos. Usei varias combinações de medicamentos ao longo dos anos, não porque eu quisesse, mas porque após alguns anos de uso cada estabilizador de humor parece perder o efeito e é hora de trocar de medicação, iniciar um novo ciclo. Mas eu fui notando que de um tempo pra cá, esses medicamentos não só iam perdendo mais rápido os efeitos no meu humor elevado, como começaram a me manter num constante estado depressivo e de falta de motivação.
Contrariando tudo que escrevi aqui ao longo dos anos, tomei
uma difícil decisão. Parei com a medicação.
Então eu estou nessa fase sem o uso da medicação há um mês.
A medicação é uma baita rede de segurança, mas é só o que ela é, ela não cura a
doença e durante vários períodos, especialmente no começo e no final do uso de
um estabilizador de humor, também não alivia exatamente os sintomas. E não dá para
esquecer o prejuízo do uso contínuo de estabilizadores de humor no fígado, na
tireoide, no coração e especula-se, no aparecimento de câncer. Ou que o uso
contínuo pode acelerar doenças como Parkinson e Alzheimer e diabetes. Seu psiquiatra,
muito preocupado com a sua saúde, faz o que ele aprendeu que é melhor nesses
casos e não te conta tudo, pode apostar.
Quem tem bipolaridade e outros transtornos persistentes pode
escolher entre adoecer da doença ou adoecer do remédio. Como o que interessa na
indústria farmacêutica é apenas o lucro, os pacientes ficam presos por décadas
com as mesmas porcarias. Tenho acompanhado a discussão sobre o uso do CBD, ou
canabidiol, por exemplo, como estabilizador de humor. Eu só acompanho essa
discussão porque sei inglês, porque se depender de mídia e publicações aqui no
Brasil, o pouco sobre isso que se discute mostra um preconceito da classe
médica que é tão retrógrada que ao mesmo tempo que eles não admitem algo que
talvez não detone tanto a saúde do paciente quanto os remédios que dão lucro na
grande indústria, sob o argumento que não há certeza dos efeitos ou da falta de
efeitos colaterais, eles aceitam ficar com medicamentos que comprovadamente dão
efeitos colaterais que você não desejaria para um rato de laboratório.
Diante de qualquer transtorno mental sério, seja ele
provisório como um transtorno de estresse pós traumático; persistente como uma
bipolaridade ou um transtorno obsessivo compulsivo; capaz de trazer um enorme
sofrimento ao doente, como uma depressão, ou capaz de fazer outras pessoas
sofrerem impiedosamente como os narcisistas patológicos, qualquer transtorno
sério requer da parte da pessoa transtornada ações capazes de minimizar o
sofrimento. O autocontrole é sempre desejável por quem não o possui, tanto
quanto é inalcançável em muitos momentos, mas é uma constante luta, tem que
ser, não tem outro jeito.
Nem sempre quem amamos e está próximo de nós vai perceber
nosso empenho em lutar para melhorar as coisas, simplesmente, porque “as coisas”
dizem respeito exatamente ao nosso comportamento destrutivo e disfuncional.
Nunca pus um dedo nas minhas filhas, mas em alguns dos meus surtos eu passei da
conta verbalmente, levantando a voz de forma absolutamente desmedida e
detonando com a autoestima delas. Sempre busquei compensar isso com minha
presença constante na vida delas, procuramos estar juntos três dias da semana.
Quando estamos juntos, na maior parte do tempo, ficamos juntos de verdade, nem
que seja vendo uma série de TV. Mas no
quesito “não levantar a voz e me tornar nervoso e agressivo”, eu falhei com
elas, várias e várias vezes, ao longo dos anos. E agora estou numa fase sem a rede
de segurança dos remédios, então, minha atenção ao meu comportamento tem que
ser redobrada. Um método de controle que eu desenvolvi com elas ao longo dos
anos é deixar claro a elas que elas podem me avisar se eu começar a passar da
conta.
A escolha de ficar sem a medicação por um tempo teve várias
razões. A maior delas é que os estabilizadores de humor, eu suponho, passaram a
piorar os meus estados depressivos, até que eu me sentisse em constante depressão
e isso começou a acabar com a minha motivação. O problema é que para mim, não é
recomendável usar antidepressivos, já que eles induzem um lado pior que a falta
de motivação, no meu caso, que é ficar muito nervoso e começar a agredir
verbalmente as pessoas, ainda que eu tente não fazer isso. O antidepressivo
impulsiona pra cima, quando se está no fundo do poço, o problema é que em
algumas doenças psiquiátricas, o antidepressivo joga pra cima um pouco demais.
O estabilizador de humor geralmente faz o caminho contrário. Apesar de atuar
como antidepressivo em boa medida e para muitos casos de muitos transtornos,
geralmente ele faz descer, quando se escalou alto demais. E alto demais não é
positivo demais. Não existe “positivo demais”, existe uma piora geral no estado
de quem passa muito tempo acometido de estados maníacos. Sorte de quem produz
muito em estados maníacos, mas meus únicos sintomas que restaram quando eu fico
nos estados acentuados “pra cima”, depois do uso constante de estabilizadores de
humor por mais de uma década, foram alguns curtos momentos de agressividade e a
falta de controle sobre pensamentos obsessivos, esses, parte de uma possível comorbidade com
minha suposta bipolaridade.
“Doenças que
interagem” define comorbidade em 3 palavras. Não há dúvidas que existe essa
interação entre bipolaridade e TOC (transtorno obsessivo compulsivo) ou, em
inglês, a sigla OCD (Obsessive-compulsive disorder). Essa interação é
interessante, alguns estados da bipolaridade são como uma injeção eletrônica no
motorzinho do TOC e 200 pensamentos obsessivos num dia comum na vida de alguém
com TOC viram 2000 quando se soma sintomas maníacos de bipolaridade e TOC. O
tratamento mais comum de TOC é aumentar sua carga de serotonina no cérebro. Só que
os antidepressivos que fazem isso também desencadeiam reações maníacas em muitos
que sofrem de bipolaridade. Então, se é um desafio tratar bipolaridade, tratar
a comorbidade com TOC é duas vezes mais desafiador.
Depressivo, sem foco, sem motivação, incapaz de tomar
decisões e produzir. Tudo isso já é motivo de sobra pra dar um tempo na
medicação. Não comecei a me tratar ontem, não é algo inconsciente, do ponto de
vista de quem alterna estabilizadores de humor há 12 anos, sentir que é preciso
uma pausa e uma nova tentativa de equilibrar as coisas sozinhas, sem rede de
segurança. Ao longo desses anos eu já tomei carbamazepina, trileptal, lamitor,
quetiapina. No começo do tratamento, foi pior, tomei lítio. Esse sugava a vida
de dentro de mim, impiedosamente. Era uma briga enorme no meu cérebro pra aceitar
lítio e como ele era devastador me obrigava a tomar antidepressivos pra compensar.
E os antidepressivos me jogavam lá em cima e o lítio lá embaixo e assim foi
durante muitos anos e com muitas outras combinações ruins, de opções ruins, de
uma indústria poderosa e na mesma medida, alienante.
Ultimamente, meu tratamento era com quetiapina. Diminuí a
dose até 25 mg por dia e depois de um mês, eu parei. No mesmo dia que eu parei
de tomar, meu sono, que habitualmente era de 8 horas, caiu pra cinco horas de
duração. Eu estava totalmente dependente de quetiapina para dormir. Estabeleci
5 horas de sono como base do que seria aceitável, ou seja, se eu perceber que
meu sono diminui para menos ainda do que cinco horas diárias, alerta vermelho,
hora de pensar nos estabilizadores de humor novamente. Se os pensamentos
obsessivos ou a agressividade ficarem fora de controle, alerta vermelho, hora
de pensar nos estabilizadores de humor novamente.
Depois de 3 semanas sem quetiapina, que eu tomava há 3 anos,
meu sono subiu de 5 para 7 horas de duração por dia. Claro que nem todo dia é
igual, mas enquanto situações fora a doença que tiram o sono não tirarem o sono
para menos que 5 horas diárias, eu creio que tenho um bom marcador do controle do
meu humor. No meu caso particular eu aprendi, ao longo dos anos, que o sono é
um bom marcador dos meus estados de humor.
Ainda não recuperei minha motivação, mas uma pequena parte dela
eu sinto que recuperei, nesse período sem remédios. Também sinto, por ora, uma
melhora na minha cognição. Eu sei, conscientemente, que isso tudo pode virar
num estado maníaco de uma hora para outra, quando eu precisarei voltar para os
remédios. Mas até lá, pelo menos por um tempo, vou tirar essas férias dos
medicamentos e redescobrir como é ser eu mesmo, com tudo que ser eu mesmo
oferece.
Fui.
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