A ausência de sentimentos é pior que a depressão. Já escrevi isso aqui, tentando descrever o embotamento causado, muitas vezes, não pela doença, mas pela medicação. Acho difícil esquecer de um tempo em que eu, apertado pra ir ao banheiro, pesando quase 120 quilos e sem nenhuma libido, perguntava à patroa se ela achava que eu deveria ir mesmo ao banheiro. Esse para mim foi o tempo do lítio, no início do tratamento, quando tudo o que a medicação fez foi melhorar a qualidade de vida de quem estava a minha volta – e não a minha. Claro que pra muita gente o lítio resolve o problema, mas não foi o meu caso, isso estava óbvio. Talvez faltou á psiquiatra da época, ao invés de me manter num tratamento desumano, se perguntar se não seria meio anormal alguém que conseguiu se inserir no mercado de trabalho como advogado autônomo estar agindo, depois do lítio, como um semi-vegetal.
Pois assim como aquela época ruim desapareceu com o melhor tratamento que eu tive em substituição ao lítio, dessa vez chegou a hora de dar adeus ao Trileptal que outrora me salvou, talvez, até do suicídio. Após 4 anos de uso contínuo e regular do Trileptal, finalmente eu começo a sentir mais prejuízo que benefício no uso desse estabilizador. Um pequeno aumento nos episódios mistos, indicando que o medicamento já não produz o mesmo efeito de antes, não foi o que motivou a mudança de medicação que está por vir, mas a piora na minha capacidade de concentração e de tomar atitudes e decisões - acionar o “start”, pra começar a fazer o que quer que eu precise – que me motivou a buscar a mudança no tratamento, pois eu estava travando mais e mais, dia após dia. E quando isso começa a atingir o trabalho, não dá pra ficar sentado esperando para ver no que vai dar.
Durante um estado misto, onde depressão e mania são perceptíveis ao mesmo tempo, é difícil saber exatamente o que está acontecendo. É difícil se perceber, se situar. Depressão, depois de um tempo, até dá para perceber que ela está ali, porque se sucumbe de forma muito óbvia, a perda de motivação é óbvia, as cores do mundo mudam de forma óbvia, e um lampejo mínimo de racionalidade que seja, durante um estado depressivo, é suficiente para fazer perceber que o exagero na tristeza com que o mundo se apresenta só pode estar vindo de dentro pra fora, e não de fora pra dentro, como acontece com alguém que acaba de perder um ente querido, por exemplo.
Mania, depois de um tempo, e de minimizá-la com tratamento, também dá pra perceber que se instalou. No meu caso, eu patológica e compulsivamente passo a achar que as pessoas bola-da-vez (aquelas a quem se dirige a agressividade, e dependendo do nível do estado maníaco, a todo mundo), não só perderam a consideração por mim, como estão fazendo questão de demonstrar isso. Coisa que só está acontecendo em minha cabeça quimicamente alterada pela doença bipolar.
Mas e estado misto? Estado misto é uma espécie de “angústia agitada”, é como ficar rodando entristecido e sem parar atrás do próprio rabo. Deprimido, mas nem por isso menos agitado, é o que parece um estado misto. É um bate-bola entre a angústia da depressão e a raiva da mania, onde não bastasse a tristeza da depressão, ela tem de vir acompanhada de sentimentos de ódio (para alguns mais sortudos, de grandeza), que se agravam consideravelmente pela dificuldade de comunicação que eu sinto nesse estado. E se tem uma coisa que torna a vida muito difícil, não só entre loucos bipolares e outros tantos transtornados, mas entre as pessoas que gostam de crer que são normais também, é a dificuldade de expor o que se quer, o que se sente. As conseqüências da dificuldade de comunicação entre as pessoas são tão óbvias quanto pregam os autores de livros de auto-ajuda e ao mesmo tempo, tão difíceis quanto se mostram na vida real. Não saber expor os próprios sentimentos da forma adequada, no momento adequado, ou para a pessoa certa, gera rompimentos de toda espécie, no trabalho, no amor e em todas as relações sociais. Não precisa ser normal para entender isso. Mas precisa ESTAR normal para entender isso. Porque num estado misto, por exemplo, eu não vejo minha dificuldade de me expressar como uma dificuldade de me expressar, eu vejo como desconsideração do outro que não quer me entender.
Ora, eu ao menos aceito a existência da doença bipolar, mesmo ouvindo, como ouvi, nesse final de semana, de um médico, que isso se cura com um machado e muita lenha pra cortar. “Tudo bem, ele é ortopedista”, disseram os outros médicos na mesa, alguma espécie de piada sobre os ortopedistas não serem médicos, eu acho. Mas eu aceito a doença bipolar, não desprezo a classificação médica da Organização Mundial de Saúde (o famoso C.I.D., que cataloga mais de 200 transtornos mentais diferentes), e sei que parte da culpa da ignorância humana sobre transtornos mentais reside nas pessoas com a lamentável cara-de-pau de usar a doença como desculpa. Mas outra parte reside no próprio atraso da medicina psiquiátrica, ciência da qual nem meu amigo médico ortopedista, que na faculdade estudou medicina psiquiátrica, parece acreditar piamente, tanto que se vangloriou, na mesa, de ter ficado de segunda época “só nessa matéria”.
Pois após 4 anos usando trileptal, é hora de dar adeus. De uns tempos pra cá, os prejuízos cognitivos vem aumentando consideravelmente. Ando com uma dificuldade imensa de me concentrar nas tarefas que eu tenho que fazer. Não consigo encadear meu raciocínio de forma a compreender todo um processo em algum trabalho específico que eu tenha que realizar, do início ao fim. Daí isso me angustia mais, e, com mais dificuldade de dizer o que eu preciso, acabo brigando com quem trabalha comigo, e não conseguindo de jeito nenhum que seja feito o que é preciso, que eu já nem sabia mais direito o que era mesmo. E em estado misto eu me questiono se sou eu, se é depressão, mas não parece, porque eu fico cronicamente agitado, mas daí não consigo usar esse gás pra fazer nada que precise ser feito, e a tristeza aumenta e ajuda a piorar o resto, e o ciclo se amplia, e tudo fica embaçado, e é aquela novela que quem tem doença bipolar (de verdade) sabe de cor, quem não tem desconfia que não existe, e tudo bem também, cada um pense o que quiser pensar e aceite e medida da própria ignorância em sua vida, que se enganar com a crença de que o pouco que se sabe já é muito, é um bom jeito de achar que está feliz.
Daí a pergunta: mas como foi que você descobriu que o que estava te fazendo mal era o remédio e não mais um complexo episódio da doença? Não tem fórmula mágica pra isso, eu simplesmente percebi que de um tempo pra cá, em absolutamente todos os estados em que eu me encontrasse, misto, depressivo, maníaco, eutímico, eu estava começando a babar na gravata, a agir como lesado, esquecer palavras, esquecer conversas, sentir um freio, um grilhão invisível, mas imenso, em tudo o que eu queria fazer, como se, independente do estado da doença, forças misteriosas conspirassem com sucesso para que eu não conseguisse sair do lugar de jeito nenhum. Escrever aqui então, nem pensar, não saía nada nem espremendo.
Sem mencionar que quase 10 dias sem trileptal devolveram boa parte do meu raciocínio, e pior, de um jeito que eu já nem lembrava mais que funcionava. Não, eu não deveria ter interrompido o tratamento sem aconselhamento médico. Sim, eu sei que em breve terei um rebote de crise por conta disso, mas eu precisava respirar, precisava sentir que existe vida à minha volta, precisava da certeza que o mundo ainda está por aqui e que não, tudo não está tão ruim quanto vem parecendo, não, eu não virei um vagabundo que precisa de machado e lenha pra trabalhar da noite pro dia, e não, tudo não fica na mesma não importando o que eu faça.
Receio, receio mesmo, eu tenho do que está por vir. O novo medicamento pode reduzir a taxa de glóbulos brancos no meu organismo. Vai ser realmente ótimo tomar um soco numa sessão de sparring, abrir o supercílio, e não só não cicatrizar, como infeccionar mais.
E tem médico que diz que um machado e muita lenha pra cortar cura doença mental. Antes fosse, pois para mim isso seria um treino, já que treinar golpes de machado, continuamente, ajuda a melhorar a força para o boxe. Mas carregar um machado por aí, não sei, mas acho que não ajudaria a melhorar as relações sociais.
Então, lá vou eu tomar meu novo mongolol, ou remédio de cabeça, como queiram, e sangrar mais, ao invés de seguir o conselho do meu amigo ortopedista e sair por aí com um machado nas mãos e um surto maníaco-depressivo na mente, que acho que vai deixar a gente normal toda morrendo de medo. E assim, eu continuo preferindo as minhas cicatrizes que as dos outros.
Mas até chegar o remedinho novo... muaaaahahahahaha!
Fui.